Grohe e a defesa do século: o dom de antecipação
Na hermenêutica costumamos repetir uma frase de Heidegger: a de que o mensageiro já vem com a mensagem. Não me pergunto sobre o que fiz, simplesmente porque já fiz. Assim é uma defesa feita por reflexo de um goleiro. Ele só se pergunta depois que...já fez.
Esse é um mistério da profissão de goleiro. Já se disse que é uma profissão maldita, porque onde pisa não nasce grama. Pode jogar 99% do tempo de uma partida de forma magnífica, mas se falhar por um instante, será amaldiçoado. Goleiro é a única função dos onze jogadores que tem de matar um leão a cada defesa, a cada instante.
Se goleiro racionalizar as suas defesas, por certo deixaria a bola entrar “n” vezes. As defesas espetaculares são as que faz por reflexo. Explicar isso? Só depois do ocorrido. Fração de segundos para pensar? Não. Fração de segundos para fazer algo que ele faz sem saber que faz e porque o faz daquela maneira. Simplesmente o goleiro faz.
Antecipação de sentido, um a priori compartilhado. Eis o que significa uma defesa feita por reflexo como a que Marcelo Grohe fez na partida contra o Barcelona de Guaiaquil. Como Gordon Banks havia feito defendendo cabeçada certeira de Pelé. Antecipa-se algo que não se controla. Assim é a pré-compreensão. Eu não a domino. Só se que é ela que me lança no mundo. Falo sobre algo porque há uma coisa chamada pré-compreensão (Vorverständnis). Ela está antes do meu próprio conhecimento.
Os grandes hermeneutas me ajudam a explicar esse fenômeno que a antecipação “de sentido” da jogada que redunda na defesa “milagrosa”. Por que dizemos “milagre”? Porque não explicamos. Não temos condições de explicar. Nem o próprio goleiro explica. Só olhando em câmera lenta conseguimos vislumbrar o fenômeno. Porque, a olho nu, não dá nem tempo para curtir. Pois é. Se não conseguimos “curtir” o fenômeno a olho nu, imagina o goleiro, protagonista do fenômeno.
Como na música cantada por Belchior, na música que tem o sublime nome de Divina Comédia Humana, imaginemos a angústia do goleiro. O poeta, para mostrar o tamanho de sua angústia, remeteu-se à angústia dessa figura humana que, quando faz “milagre”, o faz por “susto”, absolutamente sem racionalização: “Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol”. Bingo. Que melhor descrição do tamanho da angústia do que o goleiro?
Imaginemos um jogo decisivo. Finalzinho. Escanteio. Angústia. É como se todos os séculos que instauram a modernidade estivessem sob os ombros do guarda redes, do guarda valas, do goalkeeper, do arqueiro, do porteiro... Ao contrário dos primeiros modernos que tinham angústia, mas não sabiam que tinham, o goleiro tem angústia e sabe que a tem. Sabe que sabe. Joguei futebol. Uma das maiores angústias é quando a bola, já descendo em direção à área, vem na direção do turbilhão que zagueiros, atacantes...e o pobre do goleiro. Como um meteoro, a bola vem caindo. Segundos preciosos. E o goleiro precisa – agora, sim, de forma racional – pegá-la. Ou soqueá-la. Mas, se nada disso acontecer e alguém chutar cara a cara, só resta ao goleiro deixar se antecipar. Já não será ele. Será o seu dom de antecipar. Assim são as defesas espetaculares. Não racionalizadas. São um dom. Eis o que fez Grohe contra o Barcelona. Sem trocadilhos de nomes de times, esperamos que faça tudo de novo, agora contra o Real Madrid...