sexta-feira, 22 de junho de 2012

Interdição do Beira-Rio

O cornetadorw apresenta a decisão

001/1.12.0118148-9 (CNJ:.0161243-71.2012.8.21.0001)

Vistos.
O Ministério Público do Estado do RioGrande do Sul por sua Promotoria de Habitação de Defesa da Ordem Urbanística, propõe a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra o Sport Club Internacionas requerendo antecipação de tutela no sentido de interditar o complexo Beira Rio em face das obras de remodelação do Estádio. Fundamenta o pedido na ausência de Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio e de Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio – PPCI, irregularidade na Carta de Habitação, impossibilidade de compatibilizar eventos com a existência de um canteiro de obras, tolerância do Estado com irregularidades e ilegalidades e coesão jurídica. Acompanhou o pedido os autos do Inquérito Civil, tramitando em apenso. O pedido de antecipação de tutela teve apreciação postergada, com a finalidade de oportunizar a defesa. O requerido apresentou contestação (fls. 80/94). Em preliminar defendeu o litisconsórcio passivo
necessário do Município de Porto Alegre, em face do mesmo constar como investigado no Inquérito Civil que embasa a presente ação. No mérito defende a possibilidade de uso do seu Estádio durante obras de remodelação. Refere que estando em fase de obras, não pode contar com um Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio, somente após a conclusão da obra, porém o estádio é submetido à vistoria pelos Bombeiros e Brigada Militar sempre antes dos eventos, cumprindo assim os requisitos de segurança. Refere que tem tomado todas as providências apontadas pelas autoridades, no sentido de isolar o canteiro de obras das regiões do estádio ocupadas pela população que se faz presente nos eventos. Rebateu todos os argumentos da inicial e juntou documentos de fls. 95 a 340. Foi realizada uma inspeção judicial, com ata juntada às fls. 359/361.
Relatados. Decido.
O pedido de inclusão do Município de Porto Alegre na condição de
litisconsorte necessário não pode ser acolhido. O fato de o Município constar como investigado no Inquérito não implica na necessária participação do ente público em demanda que objetiva a interdição do Estádio de futebol. As atribuições do Município, como ente fiscalizador, não implica em atrair para si a responsabilidade exclusiva por eventuais medidas coercitivas. É do Clube a responsabilidade de tomar as providências para garantir a segurança nos eventos esportivos, consoante dispõe o art. 14 da Lei 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor).
De outra sorte, a presente ação visa a interdição do Complexo esportivo do requerido e não compelir os órgão públicos a tomarem tal providência. Por estas razões Em relação ao pedido de antecipação de tutela é necessário discorrer sobre o complexo de situações apontadas no processo. A demanda trata da segurança de indivíduos e isso compulsoriamente nos leva à análise do acúmulo de experiências, vindas do resgate histórico de acontecimentos trágicos que se prestam como formulação paradigmática de vários procedimentos acautelatórios. É uma maneira de buscar a intenção prospectiva voltada ao caráter preventivo das ações que deverão ser tomadas pelos agentes e instituições envolvidos no litígio, aqui incluindo o Poder Judiciário.
Impõe-se uma atenção ao conjunto legislativo que regula a questão
posta em pauta e a devida valoração dos elementos probatórios que constam no processo.
A legislação brasileira estabelece um arcabouço de dispositivos protetivos da cidadania, a começar pelo catálogo de direitos fundamentais referenciado pelo princípio da dignidade humana constante como um dos fundamentos do Estado constitucionalmente estabelecido (inciso III do art. 1º da Constituição Federal). Todo o resto da legislação, aqui incluindo as suas três esferas (federal, estadual e municipal), deve seguir a referência da base constitucional e, ao afastar-se desse vetor, cabe ao Judiciário, pelo caminho hermenêutico, restaurar o rumo perdido.
A lógica apontada também afeta com muita clareza as normas que
regulam a ordem urbanística e os eventos esportivos. É dizer, são institutos intimamente ligados aos direitos fundamentais da população. Não podemos nos afastar desse critério que, aliás, deve ser rigorosamente atendido, como forma de garantir a efetividade das leis escolhidas pela cidadania brasileira, primeiro por um processo constituinte originário e depois pela via do mandato parlamentar.
A questão no presente processo, embora complexa, reside unicamente no direito à segurança das pessoas que frequentam os eventos esportivos no Estádio do requerido. Tenho que o foco da controvérsia está exatamente em reconhecer se há ou não segurança nos jogos do Beira Rio e não se estão sendo tomadas as medidas necessárias para que tal ocorra, isso porque existe uma situação diferenciada pelo fato dos espaços destinados ao público concorrem com um canteiro de obras.
Inicialmente, os laudos técnicos e relatórios decorrentes de vistorias são relevantes para apontar os elementos de risco e indicar os procedimentos a serem tomados.
O primeiro relatório de vistoria apresentado (fls. 22/28 do Inquérito Civil), realizado por perito do Ministério Público, apontou como fator de risco a existência de caliça e outros materiais decorrentes da obra que poderiam servir como arma em caso de tumultos. Apontou também a fragilidade das barreiras de isolação do material. O relatório posterior (fls. 84/85), realizado em período em que as obras estavam paradas, atesta que o material foi removido e o canteiro de obras isolado.
Revela também que a paralisação das obras facilitou a limpeza e o controle do canteiro.
É importante o Laudo de Prevenção e Combate de Incêndio, elaborado pelo 1º Comando Regional de Bombeiros (fls. 123/129 do Inquérito), realizado em 26 de abril de 2012. Observa-se no 1º quesito que não há alvará de funcionamento emitido pelo Corpo de Bombeiros, em face da pendência do PPCI e a pendência se deve às obras. Ou seja, somente com a conclusão das obras é que se poderá apreciar o Plano de Prevenção. Isso é fato incontroverso no processo. Chama a atenção a resposta aos quesitos 7º e 8º (fls 124) em que o Comando Regional dos Bombeiros responde não ser objeto da inspeção a existência de proteção contra descargas atmosféricas. O quesito 10 atesta a sinalização deficiente da casa de força.
O quesito 15 registra a inexistência de corrimãos que atendam as normas nas escadas e rampas. O quesito 16 registra que os guarda corpos do anel superior não tem altura regulamentar segundo as normas de segurança contra incêndios. O  referido laudo aponta 33 itens que devem ser observados à satisfação das exigências de segurança e aprova o Estádio com restrições, assinalando com prazo para solução sob pena de interdição.
O laudo produzido pela Suarez Saldanha Avaliadores Independentes S/C Ltda, trazido pelo requerido juntado às fls. 174/185 do Inquérito, aponta uma série de inadequações, porém atesta com risco crítico apenas as instalações elétricas, referindo a precária situação da subestação elétrica da social e problemas menores nas demais subestações. Na inspeção judicial (fls. 361) ficou constatada a demolição da subestação da social e a existência dos mesmos problemas apontados pelo laudo em relação a subestação do museu (fls. 179 verso do laudo). Os demais itens do laudo foram classificados com risco regular (estrutura de concreto armado, sistema de combate a incêndio, acessibilidade e sinalizações), nos demais classificação foi de risco mínimo.
Sobre as abordagens técnicas, tenho como relevante neste momento, a síntese acima descrita.
Os itens apontados nos referidos documentos técnicos, em que pesem não terem ensejado medida extrema das autoridades incumbidas de fiscalizar, trazem elementos por demais preocupantes diante das seguintes circunstâncias: trata-se de um Estádio de futebol que comporta mais de 40 mil pessoais e tem sua área dividida entre arquibancadas ainda utilizadas por torcedores e um canteiro de obras.
A inspeção judicial realizada, decorrente das constatações feitas,
reforçam o alto risco da utilização do Estádio. O canteiro de obras não consiste em uma simples reforma, mas a reformulação de todo o Estádio, com a movimentação de gigantescas estruturas de concreto e maquinário pesado. Os setores que já foram submetidos a limpeza, demonstram ainda a existência de caliças, isso constatou-se no quadrante 01, lindeiro ao quadrante 02 que é ainda ocupado pela torcida adversária no seu plano inferior. As áreas são divididas por apenas um portão que é protegido pelo policiamento (ata de fls. 360 do processo). A parede da rampa de acesso 01 também fornece materiais de construção, conforme constatado no auto de inspeção.
A legislação municipal apontada na inicial que exige as devidas
autorizações (habite-se e PPCI), atende um preceito que visa assegurar a máxima eliminação de riscos na utilização dos espaços frequentados pela população. A relação de exigências atende aos preceitos de segurança para que, em eventos extraordinários, ocorridos durante a utilização do espaço, ocorra uma substancial redução dos riscos e dos danos. Não vamos considerar aqui questões estéticas, evidentemente.
Bem se pode atentar no processo, que o Estádio, diante do fato de estar em obras, não tem como obter os devidos alvarás de incêndio e de utilização pelo óbvio motivo: não atende os requisitos legais para tanto. Isso bastaria para deferir a tutela de imediato.
Ocorre que o requerido tem demonstrado incansável disposição em
atender todas as exigências impostas pelas autoridades, o que é muito louvável, mas isso não é suficiente para garantir a segurança desejável dos que frequentam o Estádio. E esta exigência deve ser inarredável por parte do Poder Público.
Registro a preocupante declaração do Ten. Coronel Stocker relatado no Inquérito e reproduzido na contestação às fls. 86 referindo que “hoje não tem como acertar”, ao rebater a necessidade de acertar o problema de segurança do Estádio, isso em face das obras. Em seguida, no mesmo termo de audiência, o representante da SMOV, José Caetano, menciona “que para o mínimo de segurança existe”. Mas o mínimo é muito pouco ou nada.
Impressiona também como o assunto foi tratado pela SMOV, ao
responder ofício do Ministério Público (fls. 11 do IC) em que os agentes ministeriais requisitam informações sobre a possibilidade de riscos a integridade física dos frequentadores do Estádio. A resposta em duas laudas às fls. 46 e 47 do IC é um atestado de falta de vontade em externar posição em relação a situação. O órgão tergiversou, informando a existência de processo administrativo aprovado, inspeção realizada para autorizar a obra, a legislação incidente e algumas de suas atribuições.
Sobre os riscos, nada.
É mais um daqueles elementos que formam o caldo de cultura que
redunda em tragédias.
É a memória dos grandes desastres que embala o rol de exigências
protetivas. Evidente que o efeito preventivo somente será efetivo se rigorosamente os agentes públicos exigirem o cumprimento de procedimentos que asseguram a integridade dos cidadãos. Os desastres acontecem sempre em face da ocorrência de um fato extraordinário acompanhado por um conjunto de causas. Seus efeitos estatísticos (quantidade de vítimas) se concretizam de forma coerente com a maior ou menor intensidade das medidas de precaução tomadas. Exemplo inquestionável se pode perceber em relação aos efeitos do terremoto no Japão em comparação com o mesmo fenômeno que vitimou o Haiti. Este último país, por não ter observado as normas de prevenção, amargou uma quantidade muito superior de vítimas, apesar de ter espaços urbanos mais reduzidos do que o Japão.
As tragédias que ocorrerem nos estádios de futebol não exigem postura distinta. Mesmo em plena regularidade, nos mais modernos estádios, um evento extraordinário, como de pânico generalizado, rompe com todos os protocolos de segurança, tornando inevitável a potencialização na produção de vítimas.
Em um espaço de alta vulnerabilidade em que os obstáculos de acesso são rapidamente
afastados pelo descontrole das massas, o acesso aos materiais disponíveis nos canteiros de obras maximiza os resultados danosos do evento. Aqui reside o insuperável problema da questão. Como dito no início, o problema não está nas medidas que estão sendo tomadas, mas nos resultados que se possam alcançar diante de um evento extraordinário. Sintomático é o fechamento de todos os demais estádios do país que estão em obras.
Em matéria de segurança, a prevenção é um componente fundamental,daí a necessidade de antever eventos que não são impossíveis de acontecer, ao contrário, são comuns: é um exercício essencial para evitar as tragédias. Depois que acontecem, nada mais se pode fazer, a não ser administrar o luto, apurar as causas e buscar os responsáveis.
A efetividade da dignidade de cada indivíduo deve ser uma rigorosa
ocupação do Estado e a segurança do cidadão é uma de suas fundamentais obrigações decorrentes deste princípio.
Por estes fundamentos, entendo como inevitável a interdição do Estádio
Beira Rio, tão somente para jogos, pelo fato de que as obras que ali se desenvolvem são absolutamente incompatíveis com a realização de eventos esportivos com frequência de milhares de pessoas, o mínimo da segurança está longe de ser satisfatório.
Pelas próprias razões até aqui expendidas, não vejo necessidade de
interditar a integralidade do complexo Beira Rio. Nenhum elemento existe no
processo que identifique os riscos inerentes aos eventos futebolísticos com as demais
utilizações do local, pelo menos neste momento.
A verossimilhança das alegações encontram-se amplamente expendidas na presente decisão, notadamente pela constatação dos danos que podem causas
aos frequentadores do Estádio em caso de tumulto, aflorando o grave risco que implica a coexistência de eventos com obras no Estádio.
Diante o exposto, defiro parcialmrnte o pedido de antecipação
tutela determinar a interdição do Estádio Beira Rio, apenas para eventos esportivos e culturais ou que implique na utilização das arquibancadas do estádio.
Fixo multa, em caso de descumprimento, em R$ 1.000.000,00 (um
milhão de reais), por evento realizado.
Indefiro o pedido de inclusão do Município de Porto Alegre como
litisconsorte necessário.
Intimem-se.
Em 22/06/2012
João Ricardo dos Santos Costa,
Juiz de Direito.